Nas minhas pesquisas sobre coletivos de periferia na América Latina - que teve a sua primeira etapa concluída com o projeto financiado pela Fapesp intitulado "Movimentos sociais, cultura, comunicação e território em São Paulo, Bogotá e Buenos Aires" - notei que alguns conceitos clássicos da ciência política são insuficientes para entender a dinâmica das opressões e dos conflitos sociais no nosso continente.
O primeiro deles é o de democracia. A maior parte das teorias políticas marcam este arranjo institucional como um dos elementos que caracterizam a ascensão da burguesia ao poder. A esfera pública política democrática é produto da emergencia da racionalidade como instancia mediadora dos sujeitos (elevados a categoria de cidadãos). Mesmo as teorias críticas - como as da Escola de Frankfurt - estabelecem seus paradigmas críticos a partir de um ideal de democracia e de racionalidade esclarecedora. Assim, demonstram que a captura destes processos pelo capital limita estes acessos. A busca por uma essencialidade democrática, portanto, está no horizonte destas perspectivas críticas.
Por que consideramos insuficiente este modelo para a América Latina? Porque este arranjo institucional já chega aqui de forma opressora. A pretensa razão esclarecedora serve para marginalizar os conhecimentos e modelos civilizatórios não europeus aqui vigentes, tanto os dos povos originários como dos afrodescendentes transplantados à força para cá na condição de escravizados. Assim, razão esclarecedora por estas bandas significa branqueamento e dá as bases para o racismo. Diante disto, a democracia se estabelece de forma incipiente e excludente e o acesso ao estatuto da cidadania passa a ser um privilégio e não um direito universal.
Diante disto, temos a segunda insuficiência dos conceitos clássicos das teorias politicas: o da impossibilidade de se constituir uma esfera pública politica ampla, bem como uma declaração universal de direitos humanos. Isto porque estes direitos humanos partem de uma universalização de uma condição particular de ser humano: o branco europeu,
Assim, a democracia transforma-se meramente em um jogo procedimental ou formalizado que convive com sistemático desrespeito a principios básicos dos direitos humanos, como o direito à vida - vejam o constante processo de exterminio de povos indígenas e afrodescendentes mesmo em periodos considerados "democráticos".
Mas isto não ocorre sem resistência. A afirmação das identidades coletivas se transforma em uma mobilização de significados que contrasta e polemiza com estas estruturas institucionais. Este processo expressa uma inteligência de apropriaçao e ressignificação dos recursos institucionais oferecidos pelo Estado democrático e, com isto, forjam-se lideranças que não se limitam a buscar espaços no aparelho institucional mas a potencializar experiencias diferentes de sociabilidade. Estamos chamando, provisoriamente, estes sujeitos que lideram estes processos de "intelectuais periféricos" que se diferenciam tanto da ideia de "intelectual orgânico" do Gramsci (que se vincula a busca da hegemonia de um determinado projeto politico de classe) ou do "intelectual dissidente" de Julia Kristeva (que estabelece uma batalha de narrativas e de sentidos a partir da pressão dos movimentos sociais). O intelectual periférico é um sujeito em trânsito que apropria e ressignifica recursos e espaços, relacionando-se de forma ambivalente com as instituições.
No áudio deste link, minha apresentação deste conceito em um Seminario sobre Resistencia às Violencias na América Latina e Caribe realizado em outubro de 2019 em Montreal.
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