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Cultura é existência, existir é resistir, resistência é cultura

Atualizado: 10 de abr. de 2020

Um psicoterapeuta amigo meu, em determinado dia em que tomávamos café, me disse que muitos dos seus pacientes traziam problemas de ressentimentos e mágoas passadas, bem como inseguranças quanto a decisão que deveria tomar em determinadas ocasiões. Ele me dizia que o mais difícil para o ser humano é entender que não existem caminhos fáceis para a vida e nem tampouco uma única forma de ser feliz, mas que todos os caminhos e formas têm ônus e bônus. E que para enfrentar os ônus, não é só pensar instrumentalmente nos eventuais benefícios mas também saber exercer a capacidade humana de se emocionar, se indignar e chorar.

Até hoje penso nesta conversa com este meu amigo. E ela me veio a tona novamente com este episódio da explicitação do nazismo do ex-secretário da Cultura do governo Bolsonaro. Não vou me alongar aqui sobre os elementos estéticos que estavam naquele vídeo horroroso que demonstram cabalmente a perspectiva nazista. Nem tampouco com o fato de que o nazismo já foi expresso em diversas outras ocasiões por este governo. Mas tratar do porque estarmos perdendo uma batalha importante no campo da Cultura que considero essencial para garantir esta humanidade plena de que meu amigo terapeuta falava.

Os teóricos da cultura sempre lembram que a origem etimológica da palavra vem do latim colere que quer dizer “cultivar”. Cultivar o que? O ser humano. Cultura é assim, uma ação presente com o objetivo de construir uma determinada perspectiva de humanidade. Não é só “tradição” mas também “perspectiva”. Caminhos. E a palavra “arte” vem de ars, “técnica”, “habilidade natural ou adquirida” ou “capacidade de fazer alguma coisa”.

E se nós partimos do pressuposto de que não existem caminhos únicos para a busca da felicidade e da humanidade, a diversidade e pluralidade são essências de uma dimensão humana da Cultura que se expressa em culturas. Quando um secretário de Cultura diz que a “arte será nacional ou não terá futuro”, significa que ele defende que uma politica cultural tem como objetivo construir habilidades e capacidades de fazer uma coisa dentro da perspectiva única do que ele (ou os ocupantes do governo) consideram ser nação. E identidade nacional, como fala Stuart Hall em Identidade cultural na pós modernidade é uma narrativa que elege determinados elemento e reprime outros para dar uma certa lógica. De que nação ele está falando?

Em um mundo de ação direta do capital globalizado em que, após a crise das grandes narrativas perpetrada pelo fim da Guerra Fria, da era do capital da acumulação flexível, do recrudescimento das ações imperialistas e da reificação absoluta de todas as identidades, há uma busca por um terreno sólido em que os estranhamentos da diferença sejam colocados em um lugar seguro. É a época das bolhas, dos condomínios fechados, das guetificações voluntárias e forçadas.

Por isto, as sensibilidades partilhadas de Jacques Rancieri são aquelas que privilegiam o semelhante. Sensibilizo-me com meu igual, reduzo minha perspectiva de humanidade aquele que me parece um espelho.

Uma arte que se coaduna com isto morre. Uma cultura que se basta a isto não tem sentido. Cultivar uma existência humana que se autobasta é não ser humano porque retira a capacidade de indignação ampla. As emoções, o choro e o riso viram espetáculos miméticos. Sem sentido. Medíocres, se bastam pela mediana do senso comum.

Isto basta a um sistema capitalista em que a maior parte do faturamento das grandes corporações se volta não para a inovação ou investimento na ampliação da produção mas para remunerar os próprios capitalistas. E estes, com cada vez mais recursos materiais, se autobastam, se fecham nos helicópteros, nas ilhas particulares, nas mansões nos condomínios fechados. A forma nababesca de viverem seduzem parcelas da classe media colocada na corda bamba com um oceano de miséria prestes a cair. E pedem que as forças de segurança sejam a rede que as protegerão da queda neste buraco. Mas o outro extremo da corda bamba vai ficando cada vez mais distante...

Este circo dantesco precisa ser destruído em nome da humanidade plena. A cultura como atributo de uma humanidade plena é o caminho. Emocionar-se tanto com a execução de uma sinfonia de Mozart quanto a um espetáculo cênico do Grupo Treme Terra. Entender a sofisticação do Paul Klee e dos grafites do Opni na zona leste de São Paulo.

Mas muito mais que esta compreensão estética, sentir a humanidade que exala de cada uma destas produções e como elas apontam caminhos possíveis para expressar a maior qualidade do ser humano que é emocionar-se em sua plenitude. Isto é existência, isto é resistência e isto é cultura.


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